sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Noctambulação


Voltei a ler as tuas palavras, as que me escreveste verdadeiramente, e as que embora tivessem ficado por dizer, te adivinhei entre outros tantos gestos. Uma suave tortura nocturna, masoquista. 
E queria tanto dizer-te que te detesto, que a tua existência mesmo longínqua e desconhecida me amargura, me agonia, e que nunca me lembro das tuas promessas incumpridas, escritas sobre a areia, nem dos teus desejos e augúrios, dos nossos passeios e carícias, das músicas que escutávamos e das caretas que fazias quando partias.
Queria dizer-te que me enraivecem as tuas mentiras, as tuas mudanças repentinas de humor, as tuas queixas constantes e a tua falta de interesse por tudo o resto, mais ainda, a forma como o cabelo caía no teu pescoço, escondido por um cachecol que abrigava em si todo o esplendor do teu aroma preferido. Mas dizer-te sobretudo que odeio a memória das tuas tentativas para arrebatar-me sorrisos amuados com as tuas gracinhas sem piada, as tuas danças desajeitadas para agradar-me e as nossas discussões linguísticas que te colocavam sempre em vantagem. Queria dizer-te tudo isto e muito mais, mas duvido que todas as palavras que me são possíveis articular fossem suficientes. Porque na realidade nada disto é real e o que odeio verdadeiramente é a mim própria. Por te ter permitido despertar faces de mim que julgava há muito extintas e todas elas te serem insuficientes. Por ter enraizado em mim tudo aquilo que uma vez foste, arrancando-te posteriormente mas deixando a superfície desprotegida, consentindo que os teus pequenos e breves regressos, tal como uma erva daninha, perturbassem a qualidade da colheita.
Mas deixemos cair a chuva meu malmequer. As tuas pétalas partem uma a uma com cada sopro de vento, porém, ainda aqui te espero.
Amanhã teremos sempre um novo sol. 

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Perfume


Eram duas da manhã. Tinha deixado a porta aberta para que viesses mas não o fizeste, e enviaste apenas o teu perfume invadir a minha morada. Esfumou-se então no desejo de querer dizer-te o quanto te odiava, que não mais te queria ver, que o céu era mais estrelado na tua ausência. Queria gritar-te aos ouvidos que te desvanecesses com as rajadas da tempestade lá fora, mas cresceu-me o sabor amargo das palavras na boca, o seu valor nulo cobriu-me a garganta de acidez e percebi subitamente que a tua existência era extraterrestre, que tinhas partido na tua frágil mas contínua nave de incongruidade e que quando a distância já não mais te agradasse, voltarias. Vociferei, rugi, apunhalei a almofada num transe psicadélico que me expulsou do meu ar absorto de ti. E aí, regressaste. Entraste, chamaste por mim. Não levantei a cara, estava exausta, à margem da força. Naquela noite, já tão longe mas ainda tão perto, abraçaste-me. Senti um esboço do teu sorriso e desfiz-me em sílabas disparatadas, o magma aqueceu-me o corpo e finalmente, disse o teu nome. Abri os olhos. Desta vez não te pedi que ficasses, sabia que mais uma vez te ausentarias. Levantei-me, a porta do tempo ainda aberta. Na escuridão do silêncio percebeste o que o meu sangue palpitante te dizia. Partiste. Mas foi então que a vi, a sombra do teu medo dissipava-se com cada um dos teus passos. Senti o teu perfume invadir a minha morada e a minha alma encheu-se novamente de ti.