terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Quando o homem decidiu ser máquina

Quando o Homem decidiu ser máquina
Desfragmentou-se em milhares de peças de solidão.
Nada restava já de consistência, uma única sensação de satisfação.
Deambulava transviado, num rumo apocalíptico sem fim absoluto,
O calor derretendo as porções de Homem separadas pelo tempo,
Partículas astronómicas sem solução na ciência,
Agitadas na ignorância e na prestidigitação…
Estar à espera, ou procurar?
O mundo terminou, o Homem já é engenho,
E os seus fragmentos apenas fósseis milenários,
Inusitados, frágeis, mas tão sublimes!
Desertor robotizado, anti-social, sem fé.
Procurar, definitivamente.
Com tantos maquinismos promissores, sem defeitos,
Como pôde uma máquina tão perfeita falhar?
Vaticínios de extinção esperam desde esse momento,
Marcados na agenda universal.
Reunir ou escapar... eis o que resta.
Poções mágicas, orações ou solstícios,
Restaurar a loucura lógica própria do ser humano,
O desejo, a paixão, o amor.
Ambicionar eternamente o sonho, a felicidade, o entendimento,
Combatendo os automatismos, restaurando o pacifismo, a compaixão.
Como pôde o Homem desejar uma morte automática,
Respirando tanta vida?
Quando o Homem decidiu ser máquina, o Cosmos estremeceu,
O Homem acordou, e o seu coração pulsou. 
03-03-2010

domingo, 16 de janeiro de 2011

Metrópole

A cidade está fria.

É noite e o seu silêncio esmaga-me como num deserto,

Embora a cidade nunca durma.

É noite e vejo um sem-abrigo procurando uma refeição num contentor vazio,

Logo seguido por dois, três mais, numa esquina tentando disputar o calor

Duma fogueira há muito adormecida.

A cidade está cega.

São sete e meia da manhã e entro numa estação de metro

Que me suga com o seu calor imundo e fétido,

Onde se refugiam animais de tamanho descomunal.

O trem circula na linha com velocidade,

Ninguém se atreve a falar, talvez por estar em plena hora de ponta

E os hálitos se tocarem no curto espaço onde se move o ar.

Encontro-me em plena Babel, mas uma Babel taciturna e glacial,

Onde as pessoas se olham com suspeita,

Como se uma revolução se fosse iniciar neste preciso momento.

Mas essa há já muito terminou, e as nossas vidas continuam

Como se nada se tivesse passado,

Como se o poder do poder tivesse sempre a razão e poder do povo não.

A cidade está muda.

Mas a cidade também irradia luz e promete sonhos:

Os seus edifícios góticos e clássicos, as suas ruas movimentadas,

A moda, os museus, as óperas e os teatros,

As esplanadas junto à estrada e a multidão que nelas se senta

De cigarro entre os dedos, café na mão e jornal na mesa.

A cidade está distinta.

Encontrar glamour no rio Sena, em piqueniques junto à Torre Eiffel

E em viver no Trocadéro.

Passear em Saint Michel, namorar nos Campos Elísios,

Comer baguettes a qualquer hora, ou foie gras às refeições,

E beber champanhe ou vinho num apéro.

Ler um livro nos jardins de Luxemburgo,

E quando o há,

Acolher o Sol com todo o meu corpo

E deixar que me ruborize a face.

Ver casais na Pont Des Arts a jurar amor eterno durante o dia,

E a festejar a juventude durante a noite…

A cidade é luminosa, visionária e intemporal,

Quer seja dia ou de noite os turistas pelas suas ruas passeiam,

E eu finjo ser um deles porque fico tão cega quanto a cidade,

E ressuscita-me sempre a mesma esperança

De que as suas atracções me manterão a seu favor mais uns dias,

Viva na cidade branca e no seu tempo cinzento,

Confundida nos seus muros, pontes e edifícios fechados.

A cidade está só.

E eu tal como ela morro neste desânimo inebriante

Mas delicioso, porque a cidade me confunde,

Me assombra com os seus contrastes e me conquista

Com o seu mistério.

A cidade está fria,

Mas a cada noite com sonhos e reflexões me aquece.

Um novo dia começa, a cidade continua fria,

Porém eu sinto-me cálida e destemida,

E desta realidade prometo nunca mais acordar.